terça-feira, 28 de agosto de 2012

Quando escrevo

Foto: Mafaldinha


Quando escrevo recupero a minha essência. Escrevo e passo a ser eu mesma, reconheço-me em cada frase e compreendo-me em cada silêncio. Aquela que em criança procurava lagartixas nos buracos das paredes e sabia sempre em qual pedra se escondia a salamandra multicolor que vivia junto à nora na leira das batatas. A que comia maças verdes do pomar do padre Avelino e amoras apanhadas nas silvas do caminho da moagem e uvas das vinhas dos vizinhos porque pareciam mais doces. Aquela que se refrescava na água do regadio e perseguia o seu curso até se perder por uma conduta enterrada na terra castanha do caminho. Aquela que sabia o nome dos pássaros e conhecia-lhes os ninhos, que não revelava a ninguém, nem sob ameaça de tortura. Aquela que admirava o virtuosismo de Madalena no romance de Julio Dinis e se revia na vida simples e bela do campo. Que não compreendia grande parte dos Novos Contos da Montanha, de Torga, mas de tantas e repetidas vezes os ler em voz alta, naquelas tardes de inverno, junto à lareira, na cozinha da avó e madrinha enquanto ela, fazia deslizar por entre os dedos o fio dos novelos de lã, transformando aquele emaranhado num quentinho casaco para o Natal ou em meias para o avô. De quando em vez a leitura era interrompida para perguntar o significado de "Judeu", "contrabandista", "penedias" ou  "prestidigitação" mas a resposta invariavelmente era a mesma, continua a ler, vá! À custa de tanta repetição,  na hora da sesta nas tardes de verão o mesmo ritual com a diferença de que o fio do novelo que agora corria por entre os dedos das mulheres era de algodão, dando origem a bonitos panos de renda e colchas trabalhadas, entranhei a curiosidade sobre o mundo Torguiano e a «grandeza das almas simples que se purificam no purgatório das chamas transmontanas» como preconiza o prefácio da 3ª edição. Escrevo e recupero a infância e de como era feliz e lembro o quanto sou feliz em recordar essa vida pequena de criança mas que me deu uma alma imensa e uma procura continuada de fidelidade à memória que é uma escola de vida.

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