sábado, 27 de setembro de 2014

Ética da vida

José Tolentino de Mendonça foi indicado para integrar o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV).
O lugar que agora vai ser ocupado pelo padre José Tolentino de Mendonça foi deixado vago pela saída do presidente do CNECV, o médico Miguel Oliveira da Silva, nomeado pelo Governo para dirigir clinicamente o Hospital de Santa Maria/ Pulido Valente, em Lisboa, na sequência da demissão de Maria do Céu Machado.
Podemos sempre meditar sobre o que Tolentino escreve, porque ele escreve sempre sobre a vida, sobre o que nos faz viver e sobre o pouco que precisamos para estar vivos.
@Maça de junho
"Menos de dois dólares
A  “pegada ecológica” diz muito acerca de nós: quantos recursos (e que  recursos) hipotecamos para construir o que é o nosso estilo de vida, quais as  necessidades que consideramos vitais e como as priorizamos, que tráfico de bens  e serviços temos de colocar em funcionamento para realizar o nosso sonho (ou a  nossa ilusão) de bem-estar. Os indicadores coincidem no seguinte: as sociedades  avançadas geram uma inflação permanente de necessidades, indiferentes aos  desequilIbrios que causam, e que são, em grande medida, não só de  sustentabilidade ambiental mas de sustentabilidade espiritual.
A verdade  é que cada um de nós traz vazios por preencher, carências e interrogações  submersas, desejos calcados que procura compensar da forma mais imediata. Não é  propriamente de coisas que precisamos, mas, à falta de melhor, condescendemos. À falta  desse amor que nem sempre conseguimos, desse caminho mais aberto e solitário  que evitamos percorrer, à falta dessa  reconciliação connosco mesmo e com os outros que continuamente adiamos… O  consumo desenfreado não é outra coisa que uma bolsa de compensações. As coisas  que se adquirem são, obviamente, mais do que coisas: são promessas que nos  acenam, são protestos impotentes por uma existência que não nos satisfaz, são  ficções do nosso teatro interno. Os centros comerciais apresentam-se como  pequenos paraísos, indolores e instantâneos. Infelizmente, de curtíssima  duração também.
Li  há dias, e impressionou-me muito, que, quando Gandhi morreu, os bens materiais  que deixou valiam menos de dois dólares. Voltei a ler para verificar se me  tinha enganado: menos de dois dólares. Os bens espirituais e civis que legou ao  futuro tinham, porém, uma dimensão incalculável. O que nos enfraquece não é, de  facto, a escassez, mas a sobreabundância; não é a indagação, mas o ruído de mil  respostas fáceis que conflituam; não é a frugalidade, mas sim o desperdício. O  que nos enfraquece é não termos escutado até ao fim o que está por detrás da  fome e da sede, da nossa urgência e da nossa fadiga, do atordoamento, dos medos  ou da abstenção.
Há  aquela cena do filme de Steven Spielberg “A Lista de Schindler”. O ator  Liam Neeson representa o papel do industrial alemão que salvou a vida a mais de  mil judeus. Na cena final, os resgatados oferecem-lhe, expressando a sua  gratidão, uma aliança com uma frase do Talrnude. «Aquele que salva uma vida,  salva o mundo inteiro». E a resposta de Oskar Schindler é inesquecível: «Podia ter  feito mais. Não sei, eu… Podia ter salvo mais. Desperdicei tanto dinheiro com  futilidades. Não fazes ideia. Se soubesses… Não fiz o suficiente. Este carro…  Porque fiquei eu com ele? Alguém o teria comprado. Teria salvo dez pessoas,  mais dez pessoas. Este alfinete! Duas pessoas! É de  ouro. Podia ter salvo mais duas pessoas. Por isto… eu poderia ter salvo mais pessoas…  e não o fiz». Estamos condenados a uma dor assim?
Mas  há finais felizes. Lembro-me dos meses que antecederam a partida do poeta  Eugénio de Andrade. Ele ficou internado longo tempo no Hospital de Santo  António, no Porto. Nessa altura, passei por lá algumas vezes a visitá-lo e só  me recordo de ouvi-lo pedir uma coisa: que lhe trouxessem duas maçãs. Não para  comer, obviamente, mas para ficar a olhá-las da cama, para sentir a cor, a  textura, o perfume, para distinguir a sua forma no silêncio, para amá-las como  se ama uma pintura de Cézanne. Acho que duas maçãs custam menos de dois  dólares, não é verdade?
 José Tolentino Mendonça In Expresso, 4.1.2014 "

Foto: Jornal i


Sem comentários:

Enviar um comentário